Como quem pede uma esmola

Preciso de uma palavra.
Em que dia ou em que noite
estará essa, que almejo,
ideal palavra insabida,
a única, a exclusiva, a só?
Dela me sinto exilado
todas as horas por junto,
com minha face, meu punho,
meu sangue, meu lírio de água.
Soletro-me em tantas letras,
e encontrá-la deve ser
encontrar a criança e o berço,
a unidade, a exatidão,
o prado aberto na rua,
a rua galgando a estrela.
Preciso de uma palavra,
uma só palavra rogo,
como quem pede uma esmola.
Em florestas de palavras
os calados pés caminham,
as caladas mãos perquirem,
os olhos indagam firmes.
Em que parábola cruel,
em que ciência, em que planeta,
em que fronte tão hermética,
em que silêncio fechada
estará viajando agora
- mariposa de ouro azul -
a palavra que desejo?
Lâmina sexo cristal
fulcro pântano convés
voraginoso fluvial
Antígona circunflexa
catastrófico crepúsculo
ênula ventre rosal
sibila farol maré
desesperadoramente
nenhuma será nem é
aquela do meu anseio.
Como será, quando vier,
a palavra entrepensada,
necessária e suficiente
para a minha construção
de lápis, papel e vento?
Dura, espessa, veludosa
ou fina, límpida, nítida?
Asa tênue de libélula
ou maciça e carregada
de algum plúmbeo conteúdo?
Distante, insone e cativo,
debaixo da chuva abstrata,
eu me planto decisivo
no tráfego confluente,
aéreo, terrestre, marítimo,
e espero que desembarque,
triste e casta como um peixe
ou ardendo em carne e verbo,
e pouse na minha mão
a áurea moeda dissilábica,
a noiva desconhecida,
a coroa imperecível:
a palavra que não tenho.

Fim

O que eu perdi não foi um sonho bom,
não foi o fruto a embebedar meus lábios,
não foi uma cançõ de raro som,
nem a graça de alguns momentos sábios.


O que eu perdi, como quem perde uma outra infância,
foi o sentido do enternecimento,
foi a felicidade da ignorância, foi, em verdade,
na minha carne e no meu pensamento,
a última rubra flor do fim da mocidade.


E dói - não esse gesto ausente, a que se apagam
as flores mais solares, mas uma hora,
- flor de momento numa breve aurora -
hora longínqua, esquiva e para sempre morta,
em cuja escura, inacessível porta
noturnos olhos cegamente vagam.

Noite

Há duas pombas brancas no telhado.
Junto delas pousa o silêncio do dia já parado,
e entre asas caladas o primeiro gesto da noite vai crescendo.
É tarde nos telhados e nas árvores,
é tarde (triste e mais tarde) nessa rua
que se reabriu no fundo de um olhar,
onde se movem ressurrectos mármores
e começam a discorrer ventos e velas
por sobre a limpidez das mesmas águas velhas,
e pássaros azuis bicam frutos de astro soltos no ar.


Sobem (de onde?) vultos escuros de coisas e de entes,
alongam a última distância, somem a luz que se destece
e a linha dos caminhos, apagam o verde prado.
Não há duas pombas brancas no telhado:
sobre elas, seu vôo e seu arrulho ausentes
a lápide sem cor das horas desce.

Poemeto rural

Amplo dia ardente de sertão.
Sol queimante de verão
fuzilando auriluzente,
em setas nos olhos da gente.
Toadas longínquas de trabalhadores no eito.
Gado engordando lentamente no pastinho estreito.
Gente engordando sonolentamente dentro de casa.
Sombras chatas de árvores estendidas no chão... Um ruflo célere de asa
riscando, às vezes, o ar parado. Silêncio longo. Soledade.
Monotonia do sertão... Monotonia da felicidade...

Desintegração

Eu tenho o coração cheio de coisas para dizer...
E a minha voz, se eu acaso falasse,
teria a força de uma revelação!


Meu espírito palpita ao ritmo desordenado e aflito
de asas prisioneiras que se dilaceraram
na arrancada impossível da libertação e da altura.


Minhas mãos tremem ainda ao contato
imaterial, sobre-humano e fugitivo
de qualquer coisa além e acima deste mundo...


Adormeceu para sempre no fundo dos meus olhos
a saudade de paisagens estranhas e longínquas,
que nunca, nunca mais voltarão neste tempo e neste espaço.


Doem meus olhos. Tremem, ansiosas, as minhas mãos.
Meu espírito palpita. Tenho o coração cheio de coisas para dizer...
Eu estou vivo, Senhor! mas, em verdade, é como se estivesse morto...

Balada quase metafísica

Eu estou assim:
absolutamente irremediável
por dentro e por fora, acordado ou dormindo
na Duração, no Tempo e no Espaço.


Eu estou assim:
sem cômodo comigo, sem pouso, sem arranjo aqui dentro.
Quero sair, fugir para muito longe de mim.
Todas as portas e janelas estão irrevogavelmente trancadas
na Duração, no Tempo e no Espaço.


Que é que eu vou fazer?
Não fica bem, assim sem mais nem menos, falecer.
Queria rezar, mas eu sou isto, meu Deus!,
e da minha reza, se reza fosse,
não ouvirias uma só palavra.


Tem pena, uma pena bem doída de mim,
meu Deus, e ouve para sempre esta oração,
e ampara isto que sou eu
na Duração, no Tempo e no Espaço.

Balada da irremediável tristeza

Eu hoje estou inabitável...
Não sei por quê,
levantei com o pé esquerdo:
o meu primeiro cigarro amargou
como uma colherada de fel;
a tristeza de vários corações bem tristes
veio, sem quê, nem por quê,
encher meu coração vazio...vazio...
Eu hoje estou inabitável...


A vida está doendo...doendo...
A vida está toda atrapalhada...
Estou sozinho numa estrada
fazendo a pé um raid impossível.


Ah! se eu pudesse me embebedar
e cambalear...cambalear...
cair, e acordar desta tristeza
que ninguém, ninguém sabe...
Todo mundo vai rir destes meus versos,
mas jurarei por Deus, se for preciso:
eu hoje estou inabitável...

Felicidade

Felicidade - o título tão comprido deste poema tão pequeno!
Felicidade - substantivo comum, feminino, singular, polissilábico.
Tão polissilábico. Tão singular. Tão feminino. E tão pouco comum.
Substantivo complicado, metafísico,
que cabe todo
na beleza clara de alguém que eu sei
e no sorriso sem dentes de meu filho.

Na rua feia

Na rua feia,
de casas pobres,
morreu o filhinho daquela mulher
que lava o linho rico
de um bairro distante.
Morreu bem simplesmente,
assim como um passarinho.
O enterro saiu...lá vai...
um caixãozinho azul
num carro velho de 3a. classe.
Atrás dois autos. Dois.


A tarde irá pôr luto
na rua feia,
de casas pobres?


Garotos brincam de esconder
atrás do muro de cartazes.
Lá no alto
vai-se abrindo grande céu sem mancha
cruzeiro-do-sulmente iluminado.

Na rua feia

Na rua feia,
de casas pobres,
morreu o filhinho daquela mulher
que lava o linho rico
de um bairro distante.
Morreu bem simplesmente,
assim como um passarinho.
O enterro saiu...lá vai...
um caixãozinho azul
num carro velho de 3a. classe.
Atrás dois autos. Dois.


A tarde irá pôr luto
na rua feia,
de casas pobres?


Garotos brincam de esconder
atrás do muro de cartazes.
Lá no alto
vai-se abrindo grande céu sem mancha
cruzeiro-do-sulmente iluminado.

A que amostraes nos olhos & no rosto

I


A que amostraes nos olhos & no rosto
Maga expressão serena de tristeza,
Porque nada he de falso, ou de supposto,
De alto quebranto augmenta essa belleza.


Essa que em vosso todo tendes posto
Tam descuydosa & candida simpleza,
A meu olhar o ser vos tem composto
De outra que não humana natureza.


Respeito disso he que, senhora, o aspeito,
Tanto que a vós vos vi, tive mudado,
E o juyzo a se perder num só sujeito:


Que he o temor de querer o vosso agrado
Quem, de rudo, de mau, & de imperfeito,
Nem sequer vos merece ter fitado.






II


Co a estulticia do Amor desavisado,
Que assi me punge & asi me faz penar,
He força, alfim, por mal de meu pecado,
Não vos deixeis, Senhora, quebrantar.


He que, pezar de mi, o meu cuydado
por de tanta belleza me esquivar
Mal seguro fraqueja incontentado
Ante a brandura desse vosso olhar.


Mostrae a mi o aspeito rudo & forte;
Alheiae-vos, Senhora, á minha dor,
E tomae tento, que, mercê da Sorte,


Entregue a seu talante & desfavor,
Mais facil he vencer a Vida, & a Morte
Que hum'alma & hum coração em seu Amor.






III


Em vam apuro a minha fortitude,
Senhora, por vencer o meu Amor.
Debalde o vosso olhar, que assi me illude,
Ao meu denega o bem de seu fulgor.


Que quanto mais de vós se desilude
Meu tino vam, mais eu chego a suppor
Que tal fereza hum dia se desmude,
E que peneis tambem da mesma dor.


Mas he sem cura o mal que anda a pungir-me:
Que, si agora padece este meu ser,
Porque eu vos vejo contra mi tam firme,


O dano de querer-vos sem vos ter,
Em vos sentindo minha, ha de ferir-me
O mal de ter-vos sem vos merecer.






IV


Essa vossa serena fermosura,
Que as mostras vos empresta de huma santa,
Tanto mais a frieza vossa apura
Quanto mais a minh'alma prende & encanta.


Mostraes vossa esquivança em tal ventura,
Co hum riso feito de belleza tanta,
Que já não sabe alfim minha tristura
Se esse desdém se augmenta ou se aquebranta.


De tal sorte esquivaes, gentil Senhora,
O meu Amor, de guisa tal tecendo,
E destecendo a trama deste engano,


Que, se hei perdido huma esperança agora,
Outra virá bem cedo apparecendo,
Pera asinha volver-se em desengano.






V


Gran segurança eu hei de que a alegria,
Que fulge em vossa linda face mansa,
E em toda essa esvelteza se atavia,
Só nasce do meu mal, que já me cansa.


E bem sabeis, Senhora, que a esquivança
Com que a mi me mataes, dia por dia,
Só serve de avivar minha esperança,
Se a mais leve ilusão me caricia.


Aquebrantae alfim vosso desprezo,
Vós que tam pura sois, & tam benina;
Trazei-me hum bem, Senhora, que me alente.


Que eu não sei de tarefa de mór peso
Que essa de, com o dano da ruina,
Tentar mover huma alma indifferente.

A intangível beleza

Saiu da mão direita de Deus e é contemporânea do Gênesis.


Seus curvos braços, feitos para fecharem-se,
ainda estão imóveis, em golfo abertos,
friamente, diante de todas as águas,
com seus peixes, suas ondas, seu sal cheio de música.
Apenas os estremece, às vezes, um ritmo de fuga ante o esplendor do fogo próximo.


Compõem sua boca as curvas do infinito e a luz,
e habitam seus olhos de maio e de distância
os vocábulos de oculto país, verdes, esveltos e evasivos.


O romper do dia espera o alvorecer dos seus pés no chão,
caem as noites e murcham os coraçõe ao esmorecer de suas pálpebras,
e as tardes refugiam-se em seus cabelos de crepúsculo.


Seu ser interior e corporal é a linfa de uma fonte ausente:
pensá-lo é escalar o vértice, regressar às origens,
ver a poesia nascendo e projetando no mundo o seu mistério.


Que gesto apartará as colunas e separará terras e águas?
Que tacto se delumbrará nos brancos astros?
Que lábio incendiará a ânfora no abismo?


(Do ninho de suas mãos obscuros pássaros cantam:
sua beleza é uma ilha de nenhum mar.)

Humildade

Minha humildade de água me trouxera
ao mais íntimo pó do pós de ti
e rira à desatada primavera
os ouros e cristais que ela sorri.


Trajada de urze, barro, liquen e hera,
ficara em desbotado e eterno aqui,
marcando, à tinta de ar, pelo ar a espera
de se entreabrirem tempestades e


silêncios para os lumes do teu passo.
Modelara-me em terra ou limo crasso
para ser teu desdém, objeto ou chão.


Vivera no final de selva e furna,
tornara o coração ilha noturna,
século, inverno a dormir o teu clarão.

Soneto do impossível

Não ouvirás nem luz, nem sombra inquieta
das sílabas que beijam tuas asas,
nem a curva em que morre a ardente seta,
nem tanta eternidade em horas rasas.


Não medirás a bêbeda corola
que abriste no final do meu sorriso,
nem tocarás o mel que canta e rola
na insônia sem estradas onde piso.


Não saberás o céu construído a fogo,
que tua jovem chave cerra e empana,
nem os braços de espuma em que me afogo.


Não verão os teu olhos quotidiana
a minha morte de homem embebida
no flanco de ouro e luar da tua vida.

Encantamento

Ante o deslumbramento do teu vulto
sou ferido de atônita surpresa
e vejo que uma auréola de beleza
dissolve em lua a treva em que me oculto.


Estás em cada reza do meu culto,
sonhas na minha lânguida tristeza,
e, disperso por toda a natureza,
paira o deslumbramento do teu vulto.


É tua vida a minha própria vida,
e trago em mim tua alma adormecida...
Mas, num mistério surdo que me assombra,


Tu és, às minhas mãos, fluida, fugace,
como um sonho que nunca se sonhasse
ou como a sombra vã de uma outra sombra...

Sub specie aeternitatis

Vi-te, e vi a expressõ essencial
da forma, da graça e da luz.
Vi-te, e vi a trémula fragilidade do efêmero
vestida das roupagens do eterno.


Vi-te, e sobre mim baixou, vindo do teu céu,
uma fulguração de raio, que feriu de vertigem
o meu destino de distâncias e negações
e deixou meus olhos sem pálpebras
para outro sol que não seja o teu esplendor.


Vi-te, e abri meu ser emudecido
para elevar à tua altura este canto de exaltação.
Mas a minha voz morreu em silenciosas névoas
e o meu coração, arquejante, parou de pulsar,
porque te vi e, vendo-te, vi em ti
o sem-limite das cousas que só habitam os sonhos sonhados
depois do tempo e além da vida.

Branca noite de luar

Mal o dia se esgueira e foge entre as árvores do crepúsculo,
insinuam-se os seus finais entre as dúvidas do nascer da noite.
Pára o rio e sua viagem. Cessam as águas a sua voz.
Cantos de pássaros interrompem-se e tombam nos ouvidos da solidão.
Póstumos bois adormecem no relvado as suas sombras,
e um gesto final do ocaso conduz a ovelha derradeira.
Entre os rebanhos recolhidos recolheu-se a tarde
e, enquanto as distâncias se estiram brancamente,
lúcido vinho vai a terra embebedando:
o chão é claro sonho e firmamento.
Verte o céu a sua azul antiguidade
sobre as formas, as ausências e os corações dos homens,
e a lua vai abrindo em leve solo nas alturas
imaginativas ruas de silêncio, de outrora,
de alva tristeza e amoroso pensamento.

Alegoria

Em vão busco acender um diálogo contigo:
a alma sem tom da tua boca de água e vento
despede cinza, névoa e tempo no que digo,
devolve ao chão o meu mais longo pensamento,


e entre cactos estira esse deserto ambíguo
que vem da tua altura ao vale onde me ausento,
procurando o teu verbo. O silêncio, investigo-o,
e ouço o naufrágio, o vácuo e o deperecimento.


Sonho: desces a mim de um céu de algas e rosas,
falas às minhas mãos vozes vertiginosas,
e palavras de flor no teu cabelo enastro.


Desperto: pairas ainda em silêncio e infinita:
meu ser horizontal chora treva e medita
tua distância, teu fulgor, teu ritmo de astro.

Poemeto Matinal

O ar da manhã beija a minha face.
A minha alma beija o ar leve da manhã
e olha a paisagem longínqua da cidade,
que branqueja alegremente na distância
e sorri humanamente
um sorriso branco no caiado das casas
que montam os flancos das colinas azuis
e espiam pelos olhos escancarados das janelas.


7 horas. Vai começar a função.
O despertador das sirenes fura liricamente
o silêncio doirado da manhã.
Parece que a vida acorda agora pela primeira vez
e esfrega os olhos deslumbradamente...


Meu Ford fordeja dentro da manhã
e sobe a rua velha do meu bairro,
arquejando, bufando, fumando gasolina.
Meu Ford a cabriolar nos buracos da rua descalça
é um cabrito todo preto a cabriolar, prodigioso.
O ar leve beija o radiador
e beija a minha face.


A meninice de todo o meu ser
na doirada névoa desta manhã!